sexta-feira, 27 de agosto de 2010
O novo analfabetismo
Até um certo momento, a capacidade de compreensão do mundo, e de nós dentro do mundo, esbarrava na falta de informações. Mais recentemente, passamos a sofrer o fenômeno oposto: excesso de informações. Nos dois casos, o que sofre é a capacidade de compreensão, de apreensão dos fenômenos que nos rodeiam, que produzem e reproduzem o mundo tal qual é e nós dentro dele. E com nossa capacidade de compreensão sofre nossa capacidade de transformação. Como resultado, nunca tivemos uma quantidade tão grande de informações disponíveis, mas nunca nos sentimos tão incapazes de compreender o mundo e tão impotentes para transformá-lo.
O segredo do conhecimento é a compreensão do que temos a ver com o mundo que criamos, mas que sentimos como alheio. Classicamente a verdade estava ligada à separação do sujeito e do objeto. A objetividade viria dessa separação. Quanto mais distantes sujeito e objeto, maior capacidade de apreensão da verdade. A contradição era identificada com a falsidade. Era a lógica da identidade que comandava a busca do conhecimento e da verdade.
A grande revolução na busca do conhecimento se deu com a inversão da natureza e do lugar da contradição, com a dialética de Hegel. A contradição, de sintoma de erro, de inverdade, passou a ser indício de captação do sentido de um fenômeno. O movimento da história se tornou inteligível e, com ele, foi recuperada a capacidade de compreensão dos fenômenos humanos na sua totalidade. O pensamento social já nunca mais foi o mesmo a partir da centralidade conquistada pela categoria da contradição.
A informação contemporânea, massificada, fragmentada, atenta contra a capacidade de compreensão da realidade como uma totalidade. Os noticiários de televisão enunciam uma enorme quantidade de informação, sem capacitar para sua compreensão, com um ritmo e uma velocidade que impedem sua assimilação e o questionamento do sentido proposto. É como se o império da velocidade impusesse um ritmo noticioso impossível de ser acompanhado e controlado pelos espectadores, é como se o noticiário televisivo tentasse substituir o noticiário escrito, sem a possibilidade que este apresenta de controle, de revisão, de questionamento. Ter sido informado dos últimos acontecimentos de conflitos como os do Iraque, da Palestina, do Afeganistão, da Chechênia ou da Colômbia já nos deixou em condições de dar conta do seu sentido, enquanto que a aparente repetição de cenas reiteradas esconde sentidos que o fim do noticiário deu por concluídos.
Já partimos de cerca de 70% de pessoas analfabetas funcionais, isto é, sem condição de ler uma carta, entendê-la e respondê-la, necessitando sempre do personagem de Fernando Montenegro em Central do Brasil. Se a eles acrescentamos os que são vítimas dessa massa de informações, sem condições de analisá-la e menos ainda de questioná-la, tirar conseqüências e construir sua própria visão dos fenômenos, chegamos a uma massa de analfabetismo incapacitada de fazer uso do conhecimento para a compreensão de si mesmo e do mundo.
O Fórum Mundial de Educação, realizado esta semana em Porto Alegre, teve o tema da relação do conhecimento com a educação e com a emancipação como um de seus debates centrais. De fato, um outro mundo, melhor do que este, não será possível, não apenas sem elevar os níveis do sistema educacional, mas sem transformá-lo, para fazer dele um instrumento de consciência e de emancipação, isto é, sem que seja um instrumento na luta pela desalienação e pela construção de sujeitos capazes de emancipação.
Apesar dos manipulados índices de matricula das nossas crianças e jovens nas escolas, que refletem avanços quantitativos reais, mas não amparados na melhoria da qualidade do ensino, nosso sistema educacional não tem tido papel central na socialização dessas crianças e jovens, afetados pela forte influencia dos apelos de consumo e do seu marketing.
A socialização democrática tem na escola seu elemento central, com uma educação laica, republicana, gratuita, pública, aberta para todos. Uma sociedade democrática tem como um dos seus componentes essenciais uma educação universal, de qualidade similar para todos. Somente assim combateremos as diversas formas de analfabetismo e qualificaremos todos para um pensamento crítico e emancipado.
Filipe Rodrigues
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