sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Henfil


É de assustar, quanta coisa perdida. Quanta história esquecida, a arte não morre com seu autor, vira cultura de um povo e por isso Recordar é viver!


"Henrique de Souza Filho era hemofílico e sempre teve uma saúde bastante delicada, assim como seus dois irmãos, Herbert de Sousa, o Betinho, e Francisco Mário. Além deles, tinha mais cinco irmãs.

Henfil nasceu em Ribeirão das Neves e cresceu na periferia de Belo Horizonte, onde freqüentou um curso superior de Sociologia, que abandonou depois de dois meses.



Foi embalador de queijos, "boy" de agência de publicidade e jornalista, até especializar-se, no início da década de 1960, em ilustração e produção de histórias em quadrinhos. ..." (Continua)

Destacamos aqui Cartas da mãe, uma crônica do autor aos últimos anos do Brasil. E o documentário, já que no feriadão estamos com tempo! Veja o documentário parte um, dois e três. Só 30 minutinhos!

A baixo, as cartas:

Natal, 12 de abril de 1978.




Mãe,


Fiquei muito alegre quando os dubladores entraram em greve. Hah, sim, lembrei. Isso não é do tempo da senhora. Dubladores são aqueles que fazem a voz no lugar dos outros. Por exemplo, a voz da Kelly, uma das panteras, quem faz é a Neuza Amaral. A da Farrah, é a Marilisi….



A greve é justa, questão trabalhista. Ponto final.



Eu estou satisfeito é porque, depois do advento dos dubladores, nunca mais ouvimos a voz real do Kojak. Ficou chatíssimo ver filme de TV. Tanto faz ser John Wayne, Woody Allen ou Baretta. A voz é sempre a mesma do mesmo dublador. E a aflição que dá ver o Marlon Brando movendo os lábios assim, e a voz saindo assado?



Talvez o desespero que toma conta da gente, quando vê um filme dublado, seja apenas identificação. Nossa situação é a mesma, mãe! Nunca notou que a minha voz, a voz da senhora, do Carlito, da Regina, do Alfredo, da Jane, da Nelma, do Humberto, do Ivan, a voz de 110 milhões de brasileiros é feita pelo mesmo dublador?



Eu quero ouvir a minha voz!



Um beijo do seu filho,


Henfil







Natal, 7 de junho de 1978.


Mãe,


Aí, na hora que a coisa tava indo, tava indo… chega a Copa do Mundo e leva tudo pra lá. É sempre assim: não conseguimos fazer duas coisas ao mesmo tempo. Não sabemos assobiar e fazer xixi ao mesmo tempo, não conseguimos chutar bola e fazer democracia ao mesmo tempo.



Mas sabe o que me dá mais raiva? Vez por outra vêm me perguntar se eu vou torcer pelo Brasil! Só porque a gente tá na oposição, eles acham que tamos contra a seleção também? Sim, porque entre os méritos do último governo sempre acrescentavam: o governo do Tri! Só pra gente ficar com ódio do Tri. E a gente era besta, a gente era bobão, não sabia das coisas e acabou achando que o Tri fosse gol do governo. Gol deles uma pinóia!



Dessa vez ninguém vai me fazer ficar contra a seleção pensando que eu tô contra o Ato Institucional número 5, não. A seleção é do povo, assim como a greve é do trabalhador!



A bênção do seu filho,


Henfil







São Paulo, 21 de março de 1979.


Seu João,



Você tinha 23 cruzeiros no bolso e voltava da assembléia do sindicato. Eles quiseram te tomar os 23 cruzeiros e você reagiu. Te balearam e te mataram.



Te conheci naquele almoço com os líderes sindicais quando você emocionado deu um presente pra a sede da Oboré: uma imagem da Aparecida. Te vi com o teu sapato de duas cores, apertei tuas mãos de eletricista e senti teu silêncio respeitoso por toda a reunião. Aí, na despedida, você nos sufocou, João. Olhando nos olhos da gente, disse mais ou menos assim: "Depois de 52 anos fiquei muito honrado, sendo preto, velho e operário de ter me sentado, conversado e almoçado com gente branca e intelectual."



Eu te conheci antes daquele almoço, quando o Sérgio me avisou: você vai conhecer um líder operário maravilhoso. É um líder natural lá na GE. De uma alegria. Ele chama greve de paradeiro.



Você tinha 23 cruzeiros no bolso, te balearam e te mataram.



Tô com saudades, João.

Henfil









New York, 20 de julho de 1974.


Dona Maria, minha mãe predileta,



Eu recebi os biscoitos de farinha e tô com eles escondido debaixo da cama, que é pra vagabundo nenhum pegar. O doce de leite com rapadura já acabou. Me fechei no banheiro e comi tudo numa alegria que só o egoísmo sabe dar. A mãe da Maria trouxe biscoitinhos de polvilho e carne-seca. Deus seja louvado!





São Paulo, 11 de abril de 1979.


Mãe,


Não suporto mais a saudade sufocante do meu irmão Betinho. Minha vida segue sem sentido e sem alegrias. Sai um disco do Chico e não consigo me entregar no canto que gostaria de partilhar com ele e com a Maria. O grito de gol fica preso no peito porque me sinto sozinho no Maracanã mais lotado.



Profissionalmente? Estou bem, muito bem. Mas eu queria que eles também se orgulhassem de mim ao receberem o jornal de manhãzinha na porta da casa deles, aqui, como todos. Faltam duas palmas, duas risadas brancas e quentinhas na hora em que as cartas são lidas ou as gracinhas são feitas na "Revista do Henfil".



Perdoa, mãe, mas biscoito de farinha só é gostoso se mastigado olhando nos olhos do irmão que sente na mesma hora a mesma delícia.



A bênção de um dos seus filhos,

Henfil






São Paulo, 13 de outubro de 1982.


Mãe,

Naquela manhã ou tarde de 1500, quando gritaram TERRA À VISTA!, os livros de história pensaram escutar navegadores, descobridores. Mas o que os índios viram, a olho nu, foi o grito de guerra dos corretores imobiliários.



Quatro séculos depois, quem não morreu, como os Pataxó, Botocudo, Tupiniquim, acordou gelado feito platéia de Calígula. O mesmo grito agora em replay: TERRA À VISTA!!



Veja a senhora, o Governo da Bahia foi quem distribuiu títulos de propriedade aos fazendeiros. Aí valeu tudo para o saque, de corrupção de funcionários a queima de ranchos.



Os índios para sobreviver não precisam de geladeiras, TVs, videocassetes, ioiôs, Angras nem aspirinas. Arrancados da terra, simplesmente morrem, estão morrendo, vão morrer.



A SENHORA É CÚMPLICE! Perdoe a frase de efeito. Mas quem agora sabe e não impedir esse genocídio passa a ser cúmplice. Do presidente à minha mãe.



Henfil.







São Paulo, 1º de setembro de 1978.


"Eu nunca soube amar. Eu nunca soube amar a cada um. Eu nunca soube amá-los como indivíduos. Eu nunca soube aceitá-los como feios, fracos e lentos. Tragam-me um doente e não chorarei com ele. Mas me mostrem um hospital e derramarei rios e mares. Eu não sei falar e ouvir um homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser herói, mas não sou capaz de ser enfermeiro. Sou capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser pequeno. Eu nunca dei uma flor. Nunca amei uma pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade, sem entregar. Por que desenho, por que escrevo cartas? Minha arte é fruto da minha importância de viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo. Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz de vocês. Henfil"




Rio de Janeiro, abril de 1977.

Querido filho Henriquinho,


Eu hoje estou me sentindo bem melhor, mas ainda não agüento andar. A perna dói bastante com a ciática. Nós aqui igual a não ser as saudades dos filhos ausentes. No Natal é que eu sinto mais. Eu queria tanto que seu irmão pudesse voltar. Eu chego a imaginar ele sentado na sala com todos. Eu recebi um retrato dele. Achei tão magrinho, tão tristinho. Será que esse tormento não vai acabar nunca? Eu tive muita esperança quando este novo presidente entrou. Achei ele com um jeitinho bom. Eu rezo muito pro seu irmão poder voltar. Mandei biscoitos pra ele pelo correio como lembrancinha de Natal. Devem ter chegado duros. Todos de casa mandam um abraço. Um beijo para Berenice e um abraço pra você. Sua mãe.





D. Maria,
Desviaram dinheiro do INPS para a construção da ponte Rio-Niterói e da hidroelétrica de Itaipu. Todo mundo sabe como muitas das grandes empresas particulares e estatais dão calote no INPS.



Aí, claro, deu esse furão que eles dizem existir porque estamos gastando demais com assistência médica. Mentira! 90% da população brasileira corre do INPS.



Bão, mas repetiram esta gigantesca mentira mil vezes e agora vão decretar o aumento da nossa contribuição para 10%.



Vamos lá, gente: o povo acaba de decretar um aumento de 10% nas doenças!



Viva a tuberculose!



Viva a meningite!



A bênção do seu perebinha.







Henfil











São Paulo, 9 de janeiro de 1980.



Mãe,


Sem piadinha. Vou me abrir.



Eu tenho acordado de uns seis meses para cá sem ânimo, sem esperança, sem vontade de brilhar, de lutar, de mudar a Lucinha, O Brasil, o mundo, o universo!



Muitas noites eu não durmo, assombrado. Pensando assim: tô ficando velho, é isso. Talvez o pessoal odara tenha razão e eu já seja coisa antiga.



Passo então a pensar angustiado em como enfrentar minha velhice tomando fortificantes, complexo B, mudando meu guarda-roupa.



Bão.



De repente eu percebi que o mano Betinho e a Maria também estão de farol baixo.



Aí, anteontem, pego o jornal e vejo o resultado da pesquisa Gallup que dizia que 71% dos brasileiros estão pessimistas. Há uma epidemia de desânimo e impotência assolando o país nesse exato momento!



O atual sistema, para governar, nos fez pessimistas. E pessimista não dorme, não faz amor, não faz partidos, não incomoda, não reclama, não briga.



Que diabo de país é este?



Pessimistas de todo o Brasil, uni-vos! Somos a maioria! Às ruas!



Henfil













São Paulo, 26 de dezembro de 1979


Mãe,



Aqui estou eu, em mais um Natal, fazendo desta carta meu sapato colocado na janela.



Eu fui bom este ano, mãe. Eu acho que fui muito bom. Eu fui solidário com todos os meus irmãos Betinhos. Fiz greve com todos os Lulas. Quebrei Belo Horizonte como todos os peões. Voltei pro país que me expulsou como todos os Juliões. Dei murro em ponta de faca como todos os Marighellas. Cantei as prostitutas, as mulheres de Atenas e joguei pedra na Geni como todos os Chicos Buarques. Aspirei cola como todos os pixotes. Fui negro, homossexual, fui mulher. Fui Herzog, Santo Dias e Lyda Monteiro.



Fui então muito bom este ano, mãe.



Aqui está minha carta sapato.



Vou fechar os olhos, vou dormir depressa.



Esperando que meia-noite todos entrem pela minha janela. Me façam chorar de alegria, que eu quero viver!



A bênção,


Henfil









Rio, 6 de abril de 1977.


Meu filho,


Eu faço votos que você esteja com saúde e feliz.



Nós aqui vamos indo como sempre. Henriquinho, você é louco? Cuidado, meu filho, com as cartas de Isto É. Estão engraçadas, mas podem não ser compreendidas. Você sabe o que faz, eu talvez seja muito medrosa. Vou mandar pelo Jaguar uns biscoitos pra você dar pros amigos, como você faz, não é? Os biscoitos não ficaram bons, acho que a goma não é boa, da outra vez vai melhor. Todos aqui mandam lembranças.



Sua mãe, Maria.

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